sexta-feira, 23 de abril de 2021

O amargo, o paradoxo e a vida

 Quando eu era criança meu pai me explicava sobre a importância de tomar vacina. Nunca chorei nem ofereci resistência para me vacinar, exceto com relação à vacina de gotinha. Eu havia compreendido que a ciência teria lugar nobre entre nós, mas meu amor pelo sabor bom das coisas me fez cuspir aquele líquido amargo. Pega em flagrante pelo meu irmão, testemunha ocular da consumada cuspida no chão, voltei compulsoriamente e muito contrariada, carregada - eu e o meu protesto - no colo, para tomar nova dose. Foi requerida a união de esforços, incluindo o de certificar a ingestão com sucesso do amargor. Me lembro de voltar para casa com a boca bem amarga, mas com a paz de levar comigo a sensação de que valeu a pena dar trabalho para quem queria fazer amargo o meu gosto. Eu tinha quatro anos. E essa cena me vem à memória com sorriso para o rosto. Fiquei muito feliz quando aos cinco anos ultrapassei a fase da vacina de gotinha. Ia para a injeção feliz em provar minha valentia. Há alguns dias os papéis se inverteram. Fui eu que levei meu pai tomar a vacina contra a covid. Não seguro pedras - de medo ou tendências - contra a vacina nas mãos. Se elas aparecem, as analiso e entrego de volta à natureza. Embora eu não mais precise provar valentia e apesar de ficar muito mais feliz sem a necessidade de tomar vacina, a ciência permanece no lugar nobre no qual, com ajuda, a coloquei. E isso não significa pretensão para julgamento. Significa que a maturidade para mim, com sutileza, ensinou a assumir eventual contragosto amargo do nosso progresso. Vejo a ciência como um, nosso, grande legado. Que recebemos, portamos e entregamos com o zelo do fomento da sua evolução para a próxima geração. Existirá a mal prática, como existe em todos os âmbitos, no entanto, o extrato da totalidade será a nossa identidade. E por mais que a ciência venha para respirar exatidão, a vida nunca prometeu certezas a alguém. Então, acontece um paradoxo. A ciência também precisa de fé. Por mais retas que sejam as suas arestas, está sob o guarda-chuva da vida que, no raro, faz curvas com linhas rígidas e nos diz, “meu filho, tu só tens de verdade a mim e eu só te peço uma coisa: tenha fé e viva feliz, não será para sempre que estará por aqui, aproveite essa viagem, não pense que algo sabe, se alimente de aprendizados como se a barriga nunca se esgotasse e tenha humildade para no final do dia fechar os olhos com a fé de que amanhã trarei novo dia”.  Assim, meu pai foi, com bom humor, vacinado. Foi rápido. Foi filmado para física memória. Foi corajoso, como foi e é viver cada dia de incerteza da vida que finalmente revelou a sua intrínseca natureza. Viver não está mais incerto do que antes. Só estamos mais lúcidos. E a graça está aí sendo servida com a gana de querer aproveitar cada gole dessa vida rica. Está na recusa do amargo sem próspero propósito. Na coragem de plantar sementes para o próximo. Está na convicção de quem sabe bem a delícia dos gostos doces e com eles dança - entre incertezas, amargores e muitas belezas - a grandeza de cada dia passado com vida.

-Letícia Marcati